PESQUISA
DESMONTAR, ATERRAR E PERFURAR
2017-2018
Rio de Janeiro-RJ
EQUIPE Pesquisa e concepção Juliana Sicuro e Vitor Garcez (Oco) Caio Calafate, Pedro Varella (Gru.a) Júlia Carreiro e Isadora Tebaldi (colaboradoras)
DESMONTAR, ATERRAR E PERFURAR
2017-2018Rio de Janeiro-RJ
EQUIPE Pesquisa e concepção Juliana Sicuro e Vitor Garcez (Oco) Caio Calafate, Pedro Varella (Gru.a) Júlia Carreiro e Isadora Tebaldi (colaboradoras)

Mapa 1 - Transformações geomorfológicas na cidade do Rio de Janeiro
Mapa 2 - Principais alterações geomorfológicas no centro da cidade do Rio de Janeiro
Mapa 2 - Principais alterações geomorfológicas no centro da cidade do Rio de Janeiro

Lista de transformações geomorfológicas na cidade do
Rio de Janeiro
AS AÇÕES QUE TRANSFORMAM E OS RASTROS QUEPERMANECEM NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO
Situada em uma região alagadiça, com a presença degrandes maciços rochosos, a cidade do Rio de Janeirofoi marcada, no curso de sua urbanização, por umasérie de operações que transformaram radicalmente sua geomorfologia: desmontes e atravessamentos demorros, aterros sobre o mar, lagoas. Se por um lado essasoperações criaram as condições para o assentamento da população crescente, por outro modificaram radicalmentesua distribuição no território, gerando importantesimpactos políticos e sociais. Nessa cidade, o raciocínio
transformador forja uma paisagem construída pelo desejohumano, na qual os limites entre natureza e ação não
estão claramente definidos.
Situada em uma região alagadiça, com a presença degrandes maciços rochosos, a cidade do Rio de Janeirofoi marcada, no curso de sua urbanização, por umasérie de operações que transformaram radicalmente sua geomorfologia: desmontes e atravessamentos demorros, aterros sobre o mar, lagoas. Se por um lado essasoperações criaram as condições para o assentamento da população crescente, por outro modificaram radicalmentesua distribuição no território, gerando importantesimpactos políticos e sociais. Nessa cidade, o raciocínio
transformador forja uma paisagem construída pelo desejohumano, na qual os limites entre natureza e ação não
estão claramente definidos.
O presente ensaio é parte de uma pesquisa desenvolvida por dois coletivos de arquitetos, gru.a e oco, ambos sediados no Rio de Janeiro. Ao abordar o tema, buscamos nos desprender de julgamentos apriorísticos e nos colocar diante das contradições que envolvem essas operações. Se por um lado as ações de desmontar, aterrar e perfurar foram responsáveispor transpor elementos físicos que se apresentavamcomo obstáculos à urbanização, por outro resultaram na criação de novas barreiras – ou muros de ar –, uma vez que muitos dos nossos exemplos são projetos deinfraestrutura pouco atentos à necessidade de mediaçãoentre escalas. Ao mesmo tempo que criaram possibilidades extraordinárias do ponto de vista da experimentaçãourbanística – como no caso do aterro do Flamengo –,essas intervenções também foram responsáveis por
alterar elementos marcantes da paisagem, demonstrando pouca vontade de conciliação com a preexistência.Procuramos, entretanto, construir aqui um discursoaberto, cujo principal objetivo é contribuir para diversificar o entendimento sobre as cidades e suas múltiplascamadas de significação.
Nesse sentido, nos aproximamos da temática em questão a partir da combinação de dois conjuntosde fontes distintas: por um lado, o farto repertórioiconográfico e textual produzido ao longo do tempopor geógrafos, arquitetos-urbanistas, literatos e
historiadores, 2 e por outro os registros de uma experiênciado cotidiano de quem habita a cidade, as impressões deum tempo resente que, ao invés de produzirem provas irrefutáveis sobre um passado a ser desvelado, nos auxiliam a formular nossas próprias narrativas. Juntos, mapa e tabela têm como objetivo mensurar as operações e localizá-las no tempo e no espaço.No período de tempo que compreende toda aurbanização da cidade do Rio de Janeiro, é possívelidentificar três momentos que concentram boa partedas intervenções em questão. No primeiro período – entre meados do século 17 e meados do 18 –, a cidade seexpandiu do morro do Castelo em direção à várzea mais próxima, zonas alagadiças são aterradas sucessivamentee as cinco lagoas que ali existiam – Pavuna, Desterro, Santo Antônio, Boqueirão da Ajuda e Sentinela – desaparecem do território onde hoje se situa o centrofinanceiro da cidade.
No final do século 19 e início do 20, observa-se umanova sequência de ações de transformação do território, que foram intensificadas e encontram semelhanças
em reformas urbanas ocorridas em diversas cidades europeias. Nesse período, foram desmontados os morros do Senado e do Castelo para a abertura de uma zona plana seca na região central da cidade. Em paralelo, foramexecutadas diversas obras de infraestrutura viária queexpandiram a cidade para sul e norte e envolveram tanto a
execução de túneis – como o túnel Velho e o túnel da ruaAlice – quanto de aterros, como aquele que deu origem à
avenida Beira-Mar e ao novo Porto do Rio.
Em meados do século 20, a cidade novamente sofreutransformações de grande porte. O morro de Santo Antônio – cujo plano de demolição estava previsto desde
o início do século – começou a ser desmontado. Com odepósito de suas terras arrasadas, executou-se um aterrode grandes proporções junto à avenida Beira-Mar, onde hoje localiza-se o parque do Flamengo. Nesse mesmo momento, grandes infraestruturas são construídas, como a avenida Perimetral e o túnel Rebouças, que visavamarticular o tráfego de veículos entre as zonas Sul e Norte e o centro.
Na última década, o Rio de Janeiro passou por maisum intenso processo de transformação urbana, dessa
vez motivado pelos grandes eventos esportivos quesediou – a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicosde 2016 – e pelo 450° aniversário de sua fundação. Essasobras recentes demonstram que se faz presente ainda
hoje no Rio de Janeiro uma certa cultura da transformação,
identificada desde o início de sua urbanização, e reforçam a atualidade do tema. Por fim, selecionamos três casos para aproximação:
o desmonte do morro do Castelo, na área central da
cidade conhecida hoje como esplanada do Castelo; a lagoa da Pavuna, nos arredores da atual rua Uruguaiana;
e a abertura do túnel Santa Bárbara, entre os bairros
de Botafogo, na zona Sul da cidade, e Catumbi, na zona
central. Procuramos, por meio desses casos, explorargraficamente a sobreposição de tempos no espaço,
de modo a promover uma leitura complementar à
cartografia bidimensional.
A essas aproximações somam-se pequenos relatos
cotidianos que nos ajudam a lançar luz às presenças materiais que evidenciam as transformações empreendidas
na cidade – e nos estimulam a pensar sobre a sobreposição de tempos no espaço que habitamos.






A ESPLANADA DO CASTELO E A LADEIRA SEM FIM
O desmonte do morro do Castelo (1922) figura entre
as mais relevantes operações de transformação
geomorfológica da paisagem carioca. O interesse por
essa parcela da cidade data de antes de sua demoliçãoe se justifica pela importância que o morro teve nosprimórdios do processo de ocupação do território pelos
colonos portugueses. 3
Um dos acessos ao morro do Castelo se dava pelachamada ladeira da Misericórdia, que hoje se resume
ao seu trecho inicial, com pouco mais de cem metros deextensão. Quem sobe agora o que sobrou da ladeira vê seu caminhar interrompido de repente, sem que haja nenhumtipo de mediação física entre a seção remanescente e otrecho demolido. A ladeira é, hoje, um plano oblíquo quecorta o tempo e a história; mas, ao contrário do que o leitor possa pensar, não há nesse sítio nada do zelo pelo
passado que é comum às áreas de relevância histórica dos
grandes centros urbanos do mundo ocidental. Tanto para os que habitam a cidade quanto para os que a visitam a
passeio, a ladeira sem fim – referida aqui tanto no sentido
da ausência de final quanto no de finalidade específica – raramente está incluída em qualquer itinerário. Foi nos últimos anos, no contexto da proliferação dos blocos de rua que se espalham pelo Rio em época de Carnaval, que tivemos a oportunidade de revisitar o local. É
relevante que tenha sido nesse contexto, quando o caminhar
se livra do pragmatismo cotidiano, que a ladeira sem fim reapareceu em nosso imaginário, se apresentando tanto como rastro de um tempo que não vivemos quanto como um trágico suporte para a condição urbana atual do centro do
Rio. O odor inconfundível que se sente dali é um anúncio de que a ladeira, que imaginávamos sem finalidade, na verdade vem sendo usada sistematicamente como um grande
banheiro não oficial pelos moradores em situação de rua.
O SAARA E A LAGOA INSISTENTE
Pouco se sabe sobre o assunto, mas na região conhecidaagora como saara havia uma lagoa bordeada por uma rua, chamada Uruguaiana, que hoje abriga um mercado popular
de mesmo nome, talvez o mais potente centro comercial da cidade. Em 1749, o então governador Gomes Freire deAndrade ordenou o aterro dessa lagoa, a lagoa da Pavuna, a retexto de expandir a malha urbana na região central.
A área correspondia a quase 30 mil metros quadrados. Nolugar onde hoje a retícula desenha o tecido vibrante de ruascomerciais, repousa aparentemente inerte a poça em que
um dia se banharam indígenas e forasteiros. Camadas de
urbanização apagam da visão aquela que foi a mais extensa
das lagoas aterradas no centro da cidade, cinco no total.
Sua existência, no entanto, vibra em tecidos subterrâneos,
secretos, landestinos, que o homem não vê, mas que num
piscar de olhos aflora como rastro da paisagem pagada.
Essa vibração é sentida no Rio de Janeiro a cada verão,quando o clima tropical costuma provocar intensastempestades. Dez minutos de um típico temporal cariocasão suficientes para tornar as ruas do saara verdadeiros anais, que rapidamente e sem pedir licença adentram as arquiteturas. Lojistas tentam fechar suas portas, mas as
frestas não impedem que as águas ali emergidas pouco
a pouco comprimam as pessoas no interior dos recintos.
Elas vazam do asfalto que impermeabiliza o chão criado
por cima da lagoa e, para sair dali, é preciso recorrer a
pequenas pontes improvisadas ou esperar o lento retornodas águas ao subterrâneo.
O CATUMBI E A CHAMINÉ MIRANTE
O Catumbi, um dos bairros mais antigos do Rio de Janeiro,viveu na pele os vários momentos da urbanização dacidade. Seu nome, de origem indígena, faz referência
direta à condição geográfica de vale úmido e sombreado. Sobre as terras úmidas se ergueram sobrados e chácaras
no período colonial. Com a expansão da cidade para a orlamarítima, o bairro logo perdeu o prestígio conquistado
como residência das classes abastadas, passando aabrigar fábricas como a Cervejaria Brahma e a RefinariaRamiro, conhecida também como Fábrica de Açúcar Brasil,inauguradas em 1888 e 1855, respectivamente. A construção do túnel Santa Bárbara, juntamente
à via que dá acesso ao bairro, coincide, entretanto,
com a desapropriação e a posterior demolição da
refinaria, nos anos 1960. O que resta dessa edificação
é um fragmento que hoje se encontra em pleno espaço
público. Sua presença não atrapalha o pragmatismo dosfluxos metropolitanos. A antiga chaminé se apresentacomo uma das poucas referências verticais em umapaisagem essencialmente horizontal, protagonizada
pelas infraestruturas viárias. Destituída de sua funçãoespecífica – levar aos céus os vapores produzidos na
atividade industrial –, a torre torna-se elemento sugestivo
de um movimento ascendente, reforçado pela escada devergalhão contígua à superfície de tijolos. Torna-se algo
como um mirante impossível ou, no mínimo, vertiginoso.



